quarta-feira, 18 de abril de 2012

Morrer com ele entalado na garganta seria mau de mais...

Aqui há uns tempos fui acometida por uma tosse seca noctívaga. Daquelas matreiras que desaparecem durante o dia e atacam durante a noite com força suficiente para nos limpar o sebo entre um cof e o outro. Uma pessoa normal teria comprado um xarope, eu comprei a lifetime supply de rebuçados Dr. Bayard. Uma pessoa normal, depois de ter comprado o xarope, tomaria uma dose de xis em xis horas, durante o tempo que fosse necessário. Eu, a meio de um ataque violento e cobarde, cambaleava até ao pacote de rebuçados, metia um na boca, dizia dois ou três palavrões e voltava a deitar-me. Na terceira noite concluí que o melhor era comprar a porra do xarope. Mentira!!! Na terceira noite concluí, sim, que o melhor lugar para guardar o pacote de rebuçados era em cima da mesa de cabeceira, à distância de um curto movimento braçal. E foi precisamente nessa noite que voltei a adormecer antes de acabar o puto do rebuçado. Momentos depois, acordei com ele entalado na garganta (o rebuçado, o rebuçado...). Entre movimentos frenéticos de braços e pernas, lá consegui escarrar o cabrão do Dr. Bayard. Isn't it ironic? Eu, que queria proporcionar uma noite descansada à pessoa que dormia a meu lado, quase lhe permiti a experiência de acordar side by side com um cadáver de olhos esbugalhados. 
E agora vem a parte menos pedagógica deste episódio, que bem podia ter acabado ao jeito de um creepy tale de Sir. Edgar Allan Poe: a tosse passou duas ou três noites depois. E eu, assim, nunca hei-de ser uma pessoa normal.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

It's in the little things

Ao invés do típico aviso (muito em jeito de ameaça), que remete quase sempre para a legislação em vigor, na cozinha da Abadia de Glastonbury, por entre os púcaros de barro e os alimentos de plástico, pode ler-se: «This food is as ancient as the abbey - please do not eat!»
PS: Tenho uma foto (com uma ar muito angelical) sentada no banquinho em frente à mesa. Se se portarem bem, no Natal publico-a.

Caminhar sobre a água (comparado com isto) é pra meninos.

A minha mãe diz que não tem medo desta crise. Sabe que as coisas estão más mas também sabe que é impossível ficarem tão más como noutras crises passadas. Noutras a que ela já sobreviveu. E eu nem precisei de abrir a boca porque, depois de dois ou três exemplos dela, fui obrigada a concordar. Não vou entrar em pormenores porque, não nutrindo vossas excelências qualquer tipo de afecto pela minha mãe, isso seria coisa para vos maçar. Mas eu, que amo a minha mãe mais do que tudo no mundo, senti um nó na garganta quando ela me disse que já tinha caminhado descalça na neve. Não consigo sequer imaginar como será caminhar descalça pela neve. Calculo que a sensação vá para além do desconforto. Calculo que esteja mais perto da dor, do desespero. A minha mãe não tem muitas fotografias de quando era pequena - assim como nenhuma das crianças que nasceram na década de 40, no interior isolado do nosso país - mas há uma do dia em que fez a primeira comunhão. Foi essa figura singela da fotografia, de vestido branco e pés descalços, que eu imaginei caminhando descalça pela neve, enquanto a minha mãe me ia explicando que, quando abria a porta,  primeiro punha um pé, até ele se habituar à temperatura, e só depois o outro. E senti uma tristeza enorme dentro de mim. E apeteceu-me viajar no tempo e ir ajudar aquela criança da fotografia. Aquela criança que um dia viria a ser a minha mãe. A minha mãe! Provavelmente, foi nesta altura que ela percebeu os meus olhos marejados de lágrimas e rematou, num tom estrategicamente irónico e brincalhão: «já era adolescente quando usei pela primeira vez uns sapatos meus. Imagina o tempo que tu pouparias, de manhã, a combinar a cor dos sapatos com o resto da roupa...» E eu, enquanto engolia o nó, retribuí usando a mesma estratégia: «ah, mas tu agora também tens muitos sapatos...» «Pois tenho! Passei do 8 ao 80... Eu e mais dez milhões de portugueses. O resultado está à vista, não está?!» E eu calei-me.


quarta-feira, 11 de abril de 2012

Pequenos prazeres, num final de dia ligeiramente chuvoso...

Quando penso em certas pessoas que já não fazem parte da minha vida, há dentro de mim uma septuagenária alcoviteira das terras altas do interior minhoto que desperta para a vida e deseja, com todas as forças do seu ser, transformar-se numa mosca - ou noutra coisa qualquer que lhe permitisse observar essas criaturas sem ser vista. Obviamente, este não seria um plano perfeito caso a distância a percorrer fosse muito longa. Ou tendo em conta que a velhinha/mosca corria o risco de ficar do tamanho do insecto que outrora fora Gregor Samsa - gigantesco, pesadão. Pormaiores técnicos à parte, ela desperta mais vezes do que aquelas que deveria. Hoje, a pessoa que alberga essa idosa de vestes pretas e feições fustigadas pela dureza da vida no campo, teve um bom-bom. Pôde ver sem ser vista. A televisão é uma coisa maravilhosa e ter ex-namorados que dão entrevistas é a cereja no topo do bolo. Sobretudo quando eles estão praticamente carecas e trocaram as lentes de contacto por uns óculos super nhié. Parece que sempre acabou o curso de advogado. Fico contente por ele. Mas só por que está careca. Obviamente.
No momento em que inicio este segundo parágrafo, já se foi parte da euforia relacionada directa ou indirectamente com a calvície da criatura. Começa agora a instalar-se um ligeiro desconforto. Um desconforto proporcional à tomada de consciência de que os 15 anos não passaram só para ele. Pelo sim, pelo não, hoje não encaro mais o espelho. 
Este último parágrafo destina-se, como facilmente se perceberá, a tentar minimizar os danos colaterais do wake up do parágrafo anterior: ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca! Ele está careca!