segunda-feira, 16 de abril de 2012

Caminhar sobre a água (comparado com isto) é pra meninos.

A minha mãe diz que não tem medo desta crise. Sabe que as coisas estão más mas também sabe que é impossível ficarem tão más como noutras crises passadas. Noutras a que ela já sobreviveu. E eu nem precisei de abrir a boca porque, depois de dois ou três exemplos dela, fui obrigada a concordar. Não vou entrar em pormenores porque, não nutrindo vossas excelências qualquer tipo de afecto pela minha mãe, isso seria coisa para vos maçar. Mas eu, que amo a minha mãe mais do que tudo no mundo, senti um nó na garganta quando ela me disse que já tinha caminhado descalça na neve. Não consigo sequer imaginar como será caminhar descalça pela neve. Calculo que a sensação vá para além do desconforto. Calculo que esteja mais perto da dor, do desespero. A minha mãe não tem muitas fotografias de quando era pequena - assim como nenhuma das crianças que nasceram na década de 40, no interior isolado do nosso país - mas há uma do dia em que fez a primeira comunhão. Foi essa figura singela da fotografia, de vestido branco e pés descalços, que eu imaginei caminhando descalça pela neve, enquanto a minha mãe me ia explicando que, quando abria a porta,  primeiro punha um pé, até ele se habituar à temperatura, e só depois o outro. E senti uma tristeza enorme dentro de mim. E apeteceu-me viajar no tempo e ir ajudar aquela criança da fotografia. Aquela criança que um dia viria a ser a minha mãe. A minha mãe! Provavelmente, foi nesta altura que ela percebeu os meus olhos marejados de lágrimas e rematou, num tom estrategicamente irónico e brincalhão: «já era adolescente quando usei pela primeira vez uns sapatos meus. Imagina o tempo que tu pouparias, de manhã, a combinar a cor dos sapatos com o resto da roupa...» E eu, enquanto engolia o nó, retribuí usando a mesma estratégia: «ah, mas tu agora também tens muitos sapatos...» «Pois tenho! Passei do 8 ao 80... Eu e mais dez milhões de portugueses. O resultado está à vista, não está?!» E eu calei-me.


4 comentários:

  1. Como te entendo... e apesar de tudo, eu continuo a considerar que eles merecem: os pais, os avós... todos os que passaram por essas dificuldades e conseguiram dar a volta merecem agora ter não sei quantos sapatos, peças de roupa para dar e vender e comidinha com fartura (diz a minha mãe que é por isso que agora todos têm colesterol, não estavam habituados!:))!

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  2. Sei o que sentiste porque já o senti na sequÊncia das palavras da minha mãe. É certo que hoje tem tanto (ou quase tanto) conforto quanto eu, mas "aprendeu" a (sobre)viver com muito pouco. Hoje as coisas têm outro peso, o consumismo é enorme, e deveria tudo ser tão simples como antigamente. Por isso é que temos tantos "problemas" e chatices. Mas cada um escolhe o que tem, e isso é sempre uma opção. Eu não queria ter que dividir uma sardinha em 4 "pedaços" (como faziam os meus avós), mas penso que hoje se estraga mais do que se utiliza. Seja como for, com esta crise as pessoas já começam a aprender a moderar os gastos.
    Esperemos que sim.

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  3. Os nossos pais foram uns guerreiros...

    blackstar, a minha mãe também costuma dar o exemplo do colesterol :)

    R., essa da sardinha fez-me lembrar uma história (cómica) da minha mãe... um dia conto ;)

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  4. Pois a minha Mãe e o meu Pai venderam quadros porta a porta e pratos e outras cenas que contrabandeavam de Espanha. E hj têm a casa cheia com tudo o que gostam e dizem: eu morrendo sou defunto! Só tenho pena que à minha Mãe lhe dê pras decorações e não pra viajar, que eu tinha sido uma adolescente bem mais viajada e agora nao tinha tanta sede!
    Anyway, a tua Mãe tem toda a razão. É por pessoas como ela que eu fico furibunda quando ouço a música do sexta-feira ou outras que tais.

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