sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Há muitos anos na “santa terrinha”

Vivia-se mal. Não! Vivia-se muito mal. Tão mal que as pessoas caminhavam descalças na neve durante os meses frios de Inverno, e nas pedras escaldantes da eira nos meses de Verão. Tão mal que, para usarem roupas lavadas, tinham que se deitar, enquanto elas secavam estendidas ao Sol. Tão mal que se alimentavam somente de pão, feito em casa, e de sopa. Nos dias melhores faziam papas, uma mistela com água e farinha para onde depenicavam umas folhas de hortaliça. Os enchidos que secavam no fumeiro da cozinha eram, na sua maioria, para vender. Comiam todos juntos à volta da lareira, uns sentados no escano, outros em pequenos bancos de fabrico artesanal. Não havia luz eléctrica, apenas umas velas e umas gambiarras que eram utilizadas apenas durante a ceia, para poupar petróleo. A refeição terminava não quando todos estavam satisfeitos mas sim quando o pote estava vazio. Um pote grande de ferro que ficava nas brasas da fogueira enquanto a família comia, sôfrega. Primeiro os homens, que vinham cansados dos afazeres no campo, depois as mulheres e as crianças. No meio do silêncio, ouviam-se as colheres bater nas malgas e os animais no piso de baixo, mesmo por baixo do soalho de madeira que sustinha a família.
Terminada a refeição, e apagadas as velas e as gambiarras, recolhiam aos quartos, quando os havia. Os homens certificavam-se de que deixavam as crossas junto da lareira, para enxugarem, durante a noite, os pingos de chuva que absorveram durante o dia. Muitas casas tinham uma divisão central – o sobrado – onde estavam as camas, as camas todas, e o tear, que atravancava ainda mais a diminuta divisão. Em cada cama dormiam várias pessoas, apertadas. Esta era a parte mais comprida da noite, que acabava logo que o dia começava a clarear. Nessa altura já os homens estavam de pé, com as crossas aos ombros e de saída, para guiarem os animais ao monte e seguirem para mais um dia de trabalhos penosos no campo. Quando passavam a soleira da porta ainda mastigavam o pequeno-almoço – um pedaço de pão duro e bolorento. O bastante para aguentar até aquela hora em que as mulheres surgiam no campo com o canistrel à cabeça, com mais um pedaço de pão duro e uma cabaça de vinho. Nos dias bons, acompanhavam meia dúzia de sardinhas fritas, mas os «dias bons» eram os dias em que tinham gente de fora a ajudar no campo, portanto, mais bocas para dividir as sardinhas.
As mulheres trabalhavam o dia inteiro nos teares. Faziam mantas de lã, e toalhas e lençóis de linho para vender na feira. Muitas vezes, as mantas, as toalhas e os lençóis eram para as casas das famílias mais ricas da aldeia, vendidos ao preço da chuva, claro. A falta de escrúpulos dessas tais famílias era mais um problema, a juntar aos outros. Nos dias em que essas mulheres carregavam as mantas e as toalhas à cabeça e iam à feira vendê-las, voltavam com uns tostões no bolso. Faziam os muitos quilómetros, entre a aldeia e a feira, a pé, para poupar o bilhete da carreira, porque os tais tostões já estavam mais do que destinados. Ou eram para abater na conta da mercearia, onde compravam o que não colhiam da terra, ou para pagar ao médico as visitas ao domicílio, por serem muitas as enfermidades dos mais pequenos e dos mais velhos, ou para pagar a uma dessas tais famílias ricas, que emprestavam numa hora de aperto e depois cobravam com juros, ainda a hora de aperto não havia passado.
Às mulheres cabia ainda a penosa tarefa – para além da de cuidar das crias – de ir aos moinhos de água no rio. Nesses moinhos desfaziam-se os grãos de milho e de centeio, com que depois faziam o pão que alimentava toda a família. Viagens infindáveis pelos caminhos de pedra íngremes que separavam o vale do rio das suas casas, no povoado: para baixo com os sacos de granulado à cabeça e para cima com os sacos de farinha, também à cabeça. Ambos muito pesados. Os tempos difíceis levavam a que esses moinhos fossem assaltados de quando em vez. Assim, a mulher que ia ao rio nunca ia descansada. Até podia cantarolar, para esquecer os roncos do estômago vazio, mas qualquer galho de árvore que, casualmente, se partisse fazia-a estremecer. E à noite dormia sempre alguém da família no moinho, para guardar a farinha dos ladrões. Nunca uma mulher, a menos que acompanhada por um dos homens da família. Mas nem todas as famílias tinham moinho. As que não tinham pagavam em géneros pelo uso dos mesmos. Famílias havia que tinham mais do que um. As tais que eram ricas.
Essas tais famílias, que eram ricas, empregavam grande parte dos rapazes e raparigas da aldeia. Os rapazes nas lides do campo e as raparigas nas lides domésticas dos seus casarões. Eram os criados de servir, como se dizia na altura. Esses rapazes e raparigas – irmãos mais velhos de muitas outras crianças – que as famílias não podiam sustentar, saiam de casa não tanto pelo salário mas sim para diminuir o número de bocas que, em casa de seus pais, se sentava à volta da lareira na hora da ceia. Auferiam 50 escudos por ano, 50 escudos que não chegavam sequer a receber. Falando em valores, talvez seja importante esclarecer que me reporto ao final dos anos 50 e início dos anos 60. Escusado será dizer que não havia um único carro na aldeia. Para grandes caminhadas pedia-se um burro emprestado a quem o tivesse. Um burro que hoje carregava sementes agrícolas e amanhã um doente enfermo. O único automóvel que por aquelas bandas passava era o do Senhor Doutor, que vinha quando a gravidade do caso assim o exigia. Quando esse carro desfilava pela rua principal da aldeia, as crianças que entravam em histeria e corriam descalças atrás dele desconheciam, na sua inocência, o que aquilo queria dizer: que alguém estava muito mal, provavelmente, com a vida por um fio. Mas o que as crianças queriam era, simplesmente, ver as suas caras reflectidas nas jantes do automóvel, e rir muito das suas feições magras distorcidas. Uma dessas crianças era a minha mãe.

1 comentário:

  1. Um relato verídico desses tempos que ainda perduram na minha memória.
    Esqueceu-se de dizer que nesses tempos ainda sobrecarregavam mais os pobres com um imposto.
    Imposto braçal.

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